F – Os Gentios
Finalmente, como os gentios se encaixam nisto tudo? Isto é, os comentários de Jesus têm relevância para judeus somente, ou eles têm relevância para os gentios procurantes também, incluindo os gentios de nossos dias?
Apesar de até agora neste ensaio eu ter focado inteiramente nas afirmações de Jesus no Evangelho de João enquanto eles são relacionados ao povo judeu (porque parece claro do contexto de suas afirmações que era este o próprio foco de Jesus quando as estava fazendo), é igualmente claro que o próprio Jesus intencionava uma secundária, mais abrangente aplicação aos gentios. Nós vemos isto em João 10:16, onde após ter discutido sua vinda para as ovelhas de Israel, Jesus acrescenta:
Tenho ainda outras ovelhas que não são deste aprisco; a essas também me importa conduzir, e elas ouvirão a minha voz; e haverá um rebanho e um pastor.
Dado o pano de fundo para as notas de Jesus (veja a discussão nas seções B e C acima), o pasto em questão era claramente Israel, a quem Jesus veio como o Messias-Pastor prometido para chamar as ovelhas fiéis do rebanho de Deus. As outras ovelhas que não são deste pasto, então, poderiam referir-se aos gentios, fora do pasto de Israel. Esta visão é apoiada pelas palavras de João no capítulo seguinte, onde, comantando a asserção de Caifás de que “convém que morra um só homem pelo povo, e que não pereça a nação toda” (11:50), o apóstolo diz: “Ora, ele não disse isso por si mesmo; mas, sendo o sumo sacerdote naquele ano, profetizou que Jesus havia de morrer pela nação, e não somente pela nação, mas também para reunir em um só corpo os filhos de Deus que estão dispersos” (11:51-52). Aqui, os “filhos de Deus que estão dispersos” são diretamente contrastados com a nação judaica, sugerindo como em 10:16 que os gentios estavam em vista. Significantemente, estes gentios são chamados “filhos de Deus” em 11:52 e “ovelhas de Cristo” em 10:16, ambos os termos que já vimos em nossa precedente discussão referentes àqueles que cumprem as condições suficientes para vir à fé em Cristo. Adicionalmente, a afirmação de Jesus em 10:16 que estas ovelhas gentias também ouviriam sua voz, indicando que ele, assim como as ovelhas judias descritas nas seções anteriores, certamente reconheceriam-non como o Messias-Pastor e segui-lo em fé. A clara implicação de tudo isso é que existiam gentios tementes a Deus também, que, como os fiéis judeus preparados, responderam favoravelmente à graça preveniente de Deus e que, portanto, pertenciam a Deus e seriam dirigidos para a fé no Filho. O Messias-Pastor veio, então, não apenas para ajuntar as ovelhas fiéis de Israel, mas para ajuntar os fiéis entre os gentios também e fazê-los todos um rebanho, um corpo, leal a ele como Messias-Pastor (cf. Ef 2:11-22, 3:6). (Note o foco paralelo em ambos 10:16 e 11:52 sobre o objetivo de unificar o rebanho/povo de Deus; cf. 17:20-21. Veja também Isaías 56:8, que em seu contexto guarda forte semelhança com João 10:16.)
Alguém poderia propor uma interpretação estreitada de João 10:16 para o efeito que Jesus quis se referir somente àqueles gentios que tinham formalmente se convertido ao judaísmo. Tais gentios são mencionados por exemplo em Atos 13:16,26, que anota a abordagem de Paulo à sinagoga judaica em Antioquia da Pisídia. “Então Paulo se levantou e, pedindo silêncio com a mão, disse: Varões israelitas, e os que temeis a Deus, ouvi: […] Irmãos, filhos da estirpe de Abraão, e os que dentre vós temeis a Deus, a nós é enviada a palavra desta salvação”. Os gentios a que Paulo se referia na sinagoga num dia normal de Sabbath, e portanto eram presumivelmente gentios que acompanhavam regularmente e tinham formalmente se afiliado à fé judaica. Esta suposição é confirmada pelo verso 43, onde nos é dito que após a abordagem de Paulo, “E, despedida a sinagoga, muitos judeus e prosélitos devotos seguiram a Paulo e Barnabé, os quais, falando-lhes, os exortavam a perseverarem na graça de Deus”.
Porém, é improvável que Jesus intencionasse em Jo 10:16 referir-se somente aos prosélitos gentios dentro do judaísmo. Por um lado, é difícil ver por que tais convertidos seriam considerados “não deste pasto [judaico]” (10:16), quando o ponto todo da conversão para o judaísmo era tal que alguém poderia a partir disto ser considerado membro da comunidade da aliança judaica (Is 56:3-8). Além disso, depois na mesma abordagem da visita de Paulo e Barnabé à sinagoga de Antioquia de Pisídia descrita acima (Atos 13), havia evidência que gentios não-prosélitos foram preparados para a mensagem do Evangelho de uma maneira semelhante àquela que nós temos visto antes que era verídica para judeus preparados. No Sabbath seguinte após a primeira apresentação na sinagoga, “No sábado seguinte reuniu-se quase toda a cidade para ouvir a palavra de Deus” [incluindo obviamente muitos gentios não-prosélitos] reunidos para ouvir a palavra do Senhor (verso 44). Porém, “Mas os judeus, vendo as multidões, encheram-se de inveja” e começaram a se opor ao que Paulo falava (verso 45). Considere cuidadosamente o que aconteceu depois:
[46] Então Paulo e Barnabé, falando ousadamente, disseram: Era mister que a vós se pregasse em primeiro lugar a palavra de Deus; mas, visto que a rejeitais, e não vos julgais dignos da vida eterna, eis que nos viramos para os gentios;
[47] porque assim nos ordenou o Senhor: Eu te pus para luz dos gentios, a fim de que sejas para salvação até os confins da terra.
[48] Os gentios, ouvindo isto, alegravam-se e glorificavam a palavra do Senhor; e creram todos quantos haviam sido destinados para a vida eterna.
De especial interesse é a descrição de Lucas dos gentios não-prosélitos que vieram à fé em Cristo. No verso 48 é dito deles que eles foram “destinados à vida eterna”. Calvinistas têm geralmente usado este verso para apoiar a doutrina da eleição incondicional particular para salvação. Porém, como Robert Shank argumenta em uma excelente discussão deste verso (Elect in the Son: A Study of the Doctrine of Election, Minneapolis, MN: Bethany House, 1970, 1989, pp. 183-187), o verbo grego tetagmenoi (masculino, plural, nominativo, perfeito, particípio passivo/médio de tasso, ‘colocar em ordem’) não especifica um agente neste verso, então é uma questão aberta se é Deus ou as pessoas em si que (ou alguma combinação de ambos) que causou estes gentios a serem ‘postos em ordem’ ou dispostos à vida eterna. Como Shank nota (seguindo diversos outros comentaristas), o fato de ser dito dos judeus no verso 46 terem rejeitado o Evangelho e portanto não se considerarem (ou julgarem) a si mesmos dignos da vida eterna (um paralelo negativo com o verso 48b) “fortemente mitiga contra qualquer suposição de agência divina no verso 48) (Shank, ibid., p. 184). Isto é, o paralelo contrastivo entre os versos 46b e 48b sugere que foram os gentios responsivos que se posicionaram em ordem [tetagmenoi] para a vida eterna na base de sua receptividade às palavras de Paulo e Barnabás, assim como os judeus descrentes se dispuseram a si mesmos contra receber a vida eterna por causa de sua resistência à mesma mensagem.
Além disto, Shank astutamente observa:
Todos aqueles que assumem que tetagmenoi em Atos 13:48 implica que aqueles que creram no Evangelho naquele momento e lugar particular o fizeram como a consequência de um decreto eterno de eleição incondicional particular adotam impensadamente uma segunda suposição, completamente absurda: todos os presentes na sinagoga que tenham crido no Evangelho, o fizeram de uma vez só; não houve oportunidade posterior de cogitar o Evangelho, e nenhum homem que falhou em crer naquele momento poderia jamais subsequentemente crer” (Shank, ibid., p. 187).
É claramente melhor, então, ver estes gentios que receberam o Evangelho com alegria em Antioquia de Pisídia naquele dia como gentios que se prepararam a fim de receber vida eterna mediante sua própria disposição para arrependimento e sendo receptivos à palavra de Deus. Neste sentido eles eram semelhantes aos judeus preparados que discutimos nas seções anteriores deste ensaio. Eles responderam favoravelmente à graça preveniente de Deus e netse sentido foram “dispostos”, “postos em ordem”, ou [uma tradução marginal] “apontados” para a vida eterna.
Outro exemplo de um gentio que qualificaríamos como uma das ovelhas de Cristo, preparada de antemão para a chegada de Cristo mediante receptividade voluntária à graça preveniente de Deus, é Cornélio em Atos 10. Em 10:1-2 Cornélio é descrito como um gentio de Cesareia, um “centurião da coorte chamada italiana”, que junto com sua família (ou pelo menos um de seus domésticos; veja o verso 7), era “piedoso e temente a Deus”. Nós somos informados que Cornélio generosamente ajudava os necessitados e orava a Deus regularmente. Em uma visão Cornélio foi informado por um anjo que “…As tuas orações e as tuas esmolas têm subido para memória diante de Deus” (verso 4). Claramente ele era um homem que fora receptivo à graça preveniente de Deus em direção a ele e que em consequência permaneceu, em algum sentido significativo, no favor de Deus. O próprio apóstolo Pedro disse isto quando viu a devoção de Cornélio após ter chegado à casa deste último em obediência a uma visão de Deus. “Então Pedro, tomando a palavra, disse: Na verdade reconheço que Deus não faz acepção de pessoas; mas que lhe é aceitável aquele que, em qualquer nação, o teme e pratica o que é justo” (At 10:34-35). A aceitação por Deus de Cornélio parece ter precedido a fé de Cornélio em Cristo, pois esta aceitação parece ter sido baseado na reverência e devoção expressas mediante as orações e esmolas de Cornélio, atos que foram recebidos como uma oferta memorial ao Senhor antes do tempo que Cornélio ouviu o evengelho de Pedro. Neste sentido, Cornélio paraleliza o caso dos judeus tementes a Deus que eram fiéis à aliança e portanti pertenciam a Deus antes da vinda de Jesus. Como eles, Cornélio foi receptivo à graça preveniente de Deus e portanto estava a postos e pronto para reconhecer Jesus como Messias e Salvador.
Estou eu dizendo que Cornélio iria para o Céu se tivesse morrido antes da vinda de Pedro? A resposta a esta questão depende, penso eu, da relação de Cornélio com a aliança como ela foi revelada ao povo judeu no Antigo Testamento. É possível que ele fosse familiar com a aliança e de forma privada, se não formal e publicamente, tenha se submetido ao termos daquela aliança, a saber, arrependimento e fé obediente em Deus e nas suas promessas, incluindo a promessa de Deus em enviar o Messias-Pastor. Neste caso, sua aceitação por Deus pode ter envolvido uma dispensação da graça salvífica paralela àquela dada aos judeus fiéis debaixo dos termos da aliança. Por outro lado, pode ser que, apesar de sua devoção, Cornélio ainda fosse considerado um gentio não-prosélito e um “estrangeiro às alianças da promessa”, portanto “separado da comunidade de Israel” e “sem esperança, e sem Deus no mundo” (Efésios 2:12). O que é claro é que Cornélio foi receptivo à graça preveniente, e por causa desta receptividade lhe foi concedido adicional graça preveniente e a oportunidade de receber a mensagem de salvação mediante Jesus Cristo. Isto mais uma vez demonstra o princípio descoberto acima, de que Cristo é a única meta do Pai na dispensação da graça preveniente. Deus não estaria contente em deixar Cornélio na ignorância de Cristo, dada a dramática receptividade de Cornélio à graça preveniente. Nesta nova era na qual o Messias chegou e trabalhou a redenção para toda a humanidade, não existe “terceira opção” para gentios mais do que existe “terceira opção” para judeus. Deus não permite que nenhum gentio que é receptivo à graça preveniente continuar em seu favor sem ser direcionado à fé consciente intencional em Cristo. Como com o povo judeu, qualquer gentio que continua aberto à verdade revelada de Deus (i.e. como revelada mediante a criação, a consciência, e a revelação verbal) ultimamente será direcionado por Deus a Cristo, pois Deus não tem outra intenção além de todos na terra e no céu sejam trazidos juntos sobre uma cabeça, Cristo (Ef 1:10).
A consideração acima sobre gentios tementes a Deus, então, leva-nos a afirmar o que é uma visão bem comum nas igrejas evangélicas acerca daqueles que nunca ouviram o Evangelho. Colocando esta visão nos termos nos quais ela é majoritariamente expressa, Deua dá mais luz àqueles que respondem à luz já dada. Arminius essencialmente mantinha esta posição, como visto na seguinte citação na qual ele aborda a situação daqueles que jamais ouviram o evangelho:
… Enquanto eles são destituídos do conhecimento de Cristo, mesmo assim Deus não deixou a Si Mesmo sem testemunha, mas mesmo durante este período ele revelou a eles alguma verdade concernente a Seu poder e bondade; cujos benefícios se eles tivessem usado corretamente, pelo menos de acordo com sua consciência, Ele teria lhes concedido maior graça; de acordo com a tal, ‘Ao que se tem se dará’ [Mateus 13:12] … ‘Todos os homens sao chamados com algum chamado’, a saber, por aquele testemunho de Deus pelo qual eles podem ser trazidos a encontrar Deus sentindo-O, e por aquela verdade que eles mantém, ou detém, em injustiça, isto é, cujo efeito eles guardam em si mesmos; e por aquela escrita da lei em suas mentes, de acordo com a qual eles têm seus próprios pensamentos acusando-os. Mas esta chamada, apesar de não ser salvífica, dao que da tal salvação não pode ser imediatamente obtida, pode ainda ser dita antecedente à graça salvífica pela qual Cristo é ofertado, e se corretamente usada, adquirirá aquela graça da misericórdia de Deus. (“Examination of Perkin’s Pamphlet,” The Works of James Arminius, London Ed., Vol. 3, trans. William Nichols, Grand Rapids, MI: Baker Books, 1986, pp. 483-484, ênfase acrescida)
Nós vemos esta verdade dramaticamente demonstrada no caso de Cornélio. Deus foi bem longe a fim de trazer o Evangelho a Cornélio, que devido à sua favorável resposta à graça preveniente de Deus pode ser considerado uma das ovelhas de Cristo afora do pasto de Israel. Uma vez exposto ao evangelho de Jesus, Cornélio continuou a responder em fé e foi apropriadamente recolhido a ajuntar-se ao restante do rebanho do Messias-Pastor, judeus e gentios de igual forma, que reconhecera a voz do Pastor e o seguira. Cornélio foi dado pelo Pai para o Filho, porque Cornélio persistiu nesta resposta-em-fé à verdade revelada de Deus. O mesmo presumivelmente é verdadeiro hoje em dia para judeus e gentios da mesma forma: Todos que são receptivos à graça preveniente de Deus e que persistem nesta resposta-em-fé terão concedidas mais graça preveniente, levando-os ultimamente à fé deliberada em Jesus, o Messias-Pastor.
A noção de persistência na resposta em fé é importante, pois nenhum dos comentários de Jesus sobre o assunto implica que a graça de Deus sequer se torne irresistível. Ainda que Jesus dissera que “todo aquele que o Pai me dá virá a mim” (Jo 6:37), esta afirmativa supõe que aqueles assim dados estão naquele tempo em um estado de receptividade à verdade revelada de Deus. Em lugar nenhum das de nenhuma passagens exploradas anteriormente encontramos alguma dica que uma pessoa que está resistindo à graça de Deus possa simultaneamente ser recipiente das ações salvíficas de Deus. Nem existe qualquer indicação que uma vez que uma pessoa comece a se alinhar com a verdade e responde favoravelmente à graça preveniente de Deus (portanto pertencendo a Deus neste sentido) ela irá necessária e irresistivelmente continuar a assim agir. As passagens que temos acima explorado apenas ensinam que se uma pessoa pertence a Deus (i.e. mediante receptividade à graça preveniente), Deus ativamente interferirá para direcioná-lo à fé intencional em Cristo. Estas passagens de e por si mesmas não excluem a possibilidade que uma pessoa que era em um certo momento receptiva à graça preveniente possa subsequentemente começar a resistir a tal graça, caso no qual ele não mais pertenceria a Deus e nem cumpriria as condições suficientes para vir à fé em Cristo. Deus neste caso não estaria obrigado a dirigi-lo a Cristo[6].