A. Opção Três: O Paradigma das Vontades Oculta/Revelada
Em suas discussões acerca da soberania divina e da responsabilidade humana, os reformadores regularmente apelavam para a posição das vontades oculta/revelada, apesar de Lutero adotar o conceito mais prontamente que Calvino. Para Lutero, as duas vontades de Deus são funções das duas maneiras que Deus se relaciona com sua criação. Por um lado, como deus revelatus, Deus se manifesta a si mesmo em Jesus Cristo. Por outro lado, Deus como deus absconditus se esconde da criação e desde que nada mais pode ser conhecido sobre o Deus escondido então nada mais deve ser dito. A vontade revelada de Deus, i.e., Jesus Cristo, proclama as Boas Novas que Deus graciosamente é por nós. O Deus escondido, com sua soberana e secreta vontade de eleição e reprovação, permanece terrivelmente inacessível.
Calvino é menos consistente em seu uso do paradigma das vontades oculta/revelada. Em obras teológicas tais como sua resposta ao controversialista católico Albert Phigius, Calvino nega uma oferta universal genuína do Evangelho. Ele estabelece, “É uma ficção pueril pela qual Phigius interpreta graça como sendo que Deus convida todos os homens à salvação apesar de serem perdidos em Adão. Pois Paulo claramente distingue os dantes conhecidos dos outros a quem Deus não se comprouve observar”[28]. Calvino denuncia a noção que Deus tenha duas vontades como “blasfêmia”[29].
Porém, os comentários de Calvino apresentam uma história diferente. Nestas obras, ele afirma que 1Tm 2:4, 2Pe 3:9 e Ez 18:23 claramente ensinam que Deus deseja a salvação de toda humanidade[30]. Calvino aqui apela para a explicação de vontades oculta/revelada para reconciliar sua interpretação dos textos universais com sua doutrina de dupla predestinação. Neste assunto pelo menos, alguém pode se perdoar por pensar se Calvino o teólogo já se encontrou alguma vez com Calvino o exegeta.
Hoje em dia, John Piper argumenta pelo paradigma das vontades oculta/revelada[31]. Ele se afasta de muitos de seus colegas reformados quando aceita que aqueles textos tais como 1Tm 2:4, 2Pe 3:9 e Ez 18:23 na realidade estão expressando um desejo da parte de Deus para a salvação de toda a humanidade. Ele reconhece que a exegese reformada tradicional destes versos convence somente aqueles que já estão persuadidos.
Piper argumenta que Deus genuinamente quer a salvação de todos, mas seu desejo é vencido pelo desejo ainda maior de ser glorificado [32]. A fim de que sua graça receba a mais completa expressão de sua glória, é necessário que ele também mostre sua justa ira contra o pecado. A completa glória de sua graça é propriamente percebida somente quando vista ao lado de seus santos julgamentos. Alguns foram selecionados por Deus para ser troféus da graça enquanto outros são escolhidos como exemplos de sua justa danação. Por que Deus seleciona alguns para salvação enquanto consigna outros à perdição é um mistério oculto nos conselhos secretos de Deus.
Existem pelo menos seis sérios problemas com a versão oculta/revelada da explanação das duas vontades. Primeiro, como Carson aponta, muitas vezes teólogos usam a vontade oculta para negar a vontade revelada [33]. Lutero certamente parecia fazer isto. Em sua discussao sobre o lamento de Jesus sobre Jerusalé [34], a resposta de Lutero é apelar para a vontade oculta de Deus.
Aqui, Deus Encarnado afirma: ‘Eu quis e vocês não’. Deus Encarnado, eu repito, foi enviado com este propósito, querer, dizer, fazer, sofrer, e oferecer-se por todos os homens, tudo que é necessário para salvação; apesar disso Ele ofende muitos que, sendo abandonados ou endurecidos pela vontade secreta da Majestade de Deus, não O recebem assim querendo, falando, fazendo e oferecendo. [35]
Lutero aponta para o Deus revelado em Cristo mas então prontamente nulifica a mensagem do Salvador apelando ao Deus oculto [36].
Por definição uma vongtade oculta é desconhecida, então como podemos falar sobre ela? Como podemos utilizar algo desconhecido como fundação teológica? Quem tem o direito de declarar que a vontade revelada de Deus não é sua vontade definitiva e basear esta asserção em algo admitidamente desconhecido? Quem ousa nulificar a vontade de Deus? Se a vontade oculta existe, então poderia ela ser escondida por que Deus não quer que a abordemos?
Um segundo problema com o paradigma das vontades oculta/revelada é tão sério quanto o primeiro. Cristo manifesta a vontade revelada de Deus, mas a vontade revelada nem sempre é efetuada porque ela é suplantada pela vontade oculta de Deus que permanece escondida no Pai. Isto leva à perturbadora conclusão que Jesus não representa o Pai como ele realmente é. Em sua discussão sobre as duas vontades em Deus, Lutero deixa isto bem claro:
Agora, Deus em Sua própria natureza e majestade é para ser deixado de lado; acerca disso, temos nada a tratar com Ele, nem Ele deseja que lidemos com Ele. Temos que trarat com Ele como mostrado e vestido em Sua Palavra, pela qual Ele apresenta-Se a nós. [37]
No cenário das vontades oculta/revelada, Cristo não mais revela o Pai.
O segundo problema leva naturalmente a um terceiro. Lutero descrfeve a vontade secreta de Deus como “macabra” e então insta seu leitor a olhar para Cristo somente[38]. Mas assim como Barth apontou, não se pode ensinar a vontade oculta de Deus e então falar às pessoas para não pensarem sobre ela[39]. Exortaçõies para não dar atenção ao homem por detrás da cortina apenas elevam suspeitas e preocupações. A dificuldade que o paradigma das vontades oculta/revelada apresenta ao ministério pastoral é bem comentada[40]. Se nossa eleição reside no propósito secreto, então que segurança o Cristo revelado nos dá? Barth conclui que não olhar Jesus com a devida atençao é olhar para o desconhecido [41].
Um quarto problema com a solução das vontades oculta/revelada é que ela faz o pregador parecer hipócrita. Engelsma realça este problema quando ele repreende o pastor reformado que prega a vontade revelada enquanto silenciosamente adere a uma vontade oculta.
Você pode agora pregar a todos os homens que Deus os ama com um amor redentivo e que Cristo morreu por eles para salvá-los de seus pecados, mas ao mesmo tempo sussurra para si mesmo, ‘Mas ele na realidade salvará apenas alguns de vós e Ele não salvará outros de acordo com Sua própria vontade soberana’. O que você sussurra para si mesmo torna a mensagem do amor universal, expiação universal, e desejo universal de salvar, que você audivelmente proclama, uma fraude. [42]
Se aquilo que sussurramos para nós mesmos torna aquilo que proclamamos uma fraude, então de fato somos culpados de dissimulação.
Pior ainda, a abordagem das vontades oculta/revelada aparenta tornar Deus um hipócrita, o que é um quinto problema. Deus universalmente oferece uma salvação que ele não tem intenção que todos recebam. Soteriologia reformada ensina que Deus é oferecido a todos, mas graça eficaz é dada apenas aos eleitos[43]. Os limites da salvação são estabelecidos pela soberana e secreta vontade de Deus. Numerosas vezes – mediante os profetas, o Salvador, e os apóstolos – Deus publicamente revelou um desejo para a salvação de Israel enquanto secretamente vê que eles não se arrependerão. Calvino, citando Agostinho, afirma que desde que nós não sabemos quem são os eleitos e quem são os reprovados nós devemos desejar a salvação de todos [44]. Shank retruca, “Mas por quê? Se não é este o desejo de Deus, por que deveria ser o de Calvino? Por que Calvino deseja ser mais gracioso que Deus?” [45]
O que nos traz à sexta e fundamental objeção ao paradigma das vontades oculta/revelada: ele falha em encarar os próprios problemas que intende abordar. Ele evita o próprio dilema que a teologia decretal cria. Peterson, em sua defesa da posição reformada sobre as duas vontades, afirma: “Deus não salva todos os pecadores, pois ultimamente ele não intende salvar todos eles. O dom da fé é necessário para salvação, mesmo assim por razões além de nosso entendimento, o dom da fé não é dado a todos” [46]. Mas então ele conclui, “Enquanto Deus comanda a todos o arrependimento e não toma prazer na morte do pecador, nem todos são salvos porque não é a intenção de Deus dar sua graça redentiva a todos” [47]. Devo ser cândido e confessar que esta citação não tem sentido nenhum para mim.
Vamos lembrar que não há discórdia sobre responsabilidade humana. Agostinianos, calvinistas, arminianos e outros cristãos ortodoxos concordam que os perdidos são perdidos por causa de seus próprios pecados. Mas esta não é a questão em pauta. A questão não é “Por que os perdidos são perdidos?” mas sim “Por que os perdidos não são salvos?”. O desagradável, terrível, “profundo, obscuro, imundo segredinho” do calvinismo é que ele ensina que existe uma e apenas uma resposta à segunda questão, e ela é: Deus não quer que eles sejam salvos [48]. Outros sistemas teológicos podem ter problemas semelhantes [49] mas a teologia reformada temn a distinção de fazer desta dificuldade a pedra fundamental de seu entendimento da salvação.